_____Um tanto curioso o limite de dó do ser humano. Digo, aquele ponto em que se tenha piedade. Algumas coisas são consideradas absurdas, outras são cotidianas e ignoradas.
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Não acredito que todos sempre tenham sido assim. Hoje, andando pela Paulista, vi um cego pedindo esmolas. Ele sempre está lá com outra cega. Segui andando. Vi um senhor negro, ajoelhado em uma almofada, balançando um pote, com uma placa "Por favor, me ajude a comprar meus remédios". Segui andando. Tenho uma filosofia de vida: não ir dormir pensando em algo que poderia ser feito aquele dia. Não queria me arrepender de não ajudar alguém. Entrei em uma loja para ver se tinha trocado, não tinha. Segui. No mesmo quarteirão em que vi esses 2 necessitados, vi um que também sempre esta lá. Ele é todo torto, também tem uma placa, anda se rastejando e nos encara implorando, silenciosamente, por misericórdia.
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Ninguém olha, ninguém se assusta, ninguém nota. Fiquei imaginando se todos percebem mas não conseguem olhar por dó. Mas não, acho que só já nos acostumamos. Quando será que isso aconteceu? Talvez cada um já nasça assim. Talvez todos nasçam compaixosos e a criação modifica isso.
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Não acredito em nada disso. Assim como não olho nos olhos dessas pessoas, não queria escrever isto. Mas acho que já somos assim há algumas gerações. Ou, considerando a escravidão etc, talvez já sejamos assim há alguns bons séculos. Desde que surgiu a propriedade privada? Não sei quando, mas nos acostumamos a ver essas coisas. Talvez nasçamos impressionados, curiosos; nada mais. Como a curiosidade só acorda com o novo, o raro, essa curiosidade morre rápido, tantas são as barbáries que vemos e, logo, ignoramos.
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A questão é: desde quando o homem deixou de se afligir com outros homens com fome, com dor? É triste isso já ser tão interno, tão nosso.
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Pensei, pensei, pensei. Percebi que eu mesma, não tive dó do cego. Só tive dó daqueles que olharam nos meus olhos, e cujo pedido eu neguei, desviando o olhar.
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Depois, pior: percebi que não fora dó nem compaixão, só medo da consciência pesada. Que vergonha. Quis ajudar alguém por causa de uma "filosofia".
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Talvez eu me acostume com o cara da almofada e dos remédios, e com o cara torto. Sinto que isto já esteja acontecendo. E é assim que acontece. Algo absolutamente bárbaro é tratado como tal, até que se vire comum. Mesmo sendo tão bárbaro quanto antes, não importa mais, pois é cotidiano. É esse o pensamento humano generalizado.